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João Eichbaum

Um animal de muitas faces

O homem perdeu o pelo e o rabo; abandonou o hábito de usar os membros superiores como instrumento de apoio no andar; deixou de viver encarapitado nas árvores; aprendeu a produzir seus instrumentos de caça e pesca e, ao invés de deixar que a vida o levasse, começou a cultivar costumes que o servissem para levar a vida. Travestido de animal social, saiu da fauna para a tecnologia, deixou de pular de galho em galho, para pagar pedágio.
Hodiernamente, olhada sob o prisma da vida em sociedade, essa espécie de animal, vertebrado, bípede, falante, e não alado, está nitidamente dividida em duas classes: a dos sentimentalistas, que pensam e agem sob o domínio dos sentimentos, e a dos racionalistas, que só usam a razão como mentora de suas atitudes e propósitos. Naturalmente há subdivisões, nas quais se aninham os variantes graus de racionalismo e sentimentalismo.
Os sentimentalistas formam a maioria dominadora da humanidade. Escravos de crenças, superstições e outras ideias que recusam a natureza animal do símio homem, facilmente se entregam a surtos de piedade e comiseração para com o próximo.
Os racionalistas assumidos são dominados pelo exercício da lógica, que os mantém presos ao instinto natural de sobrevivência. Esse instinto é que os governa e prepondera sobre as convenções sociais: primeiro eu, minha família; depois, se sobrar tempo e dinheiro, os outros. Eles sabem que do céu só cai chuva, raio, neve e, de vez quando, aviões. Por isso, ao invés de se valerem de crenças, orações e jogos de loteria,  se empregam na própria realização. A realização conquistada por esforço próprio, calcada na capacidade, na inteligência e, sobretudo, na abnegação, cristaliza, com certeza em alto grau, seu egoísmo, e lhes aguça a autossuficiência: se eu pude, todos os outros bípedes não alados, de carne e osso, e dotados de raciocínio, chamados homens, poderão também.
Realizados, os racionalistas passam a exigir dos outros o que eles exigiram e exigem de si mesmos: não pedem, nem aceitam favores. Pagando seus impostos, se sentem gratificados, porque assim fazem o que lhes compete como animais gregários, que não dispensam a convivência social. Eles sabem que ao Estado compete a administração do bem comum, e por isso lhe fornece os meios para que a instituição faça sua parte.
Mas, o Estado não cumpre seu dever. E suas omissões permitem o alastramento da miséria. Multiplicados, os miseráveis deixam  rastros dessa miséria por onde andam: se apoderam do alheio, se aboletam em qualquer parte, constroem barracos, usados pelo vento como brinquedos de papel. E aí é a hora  dos sentimentalistas se entregarem a dolentes suspiros de compaixão.
O terror plantado pela Defesa Civil (o Estado) baseado em achômetros dos oráculos da meteorologia, dias atrás, acentuou bem a divisão: sabiam os racionalistas que nenhuma providência lhes competia, mas os sentimentalistas, abrigados no lar, sofriam pelos pobrezinhos que o vento não poupou, incluídos os miseráveis que aproveitam as noites para surrupiar grades de ferro, hidrômetros, fios de luz, tampões de bueiros, etc.

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