DESTINOS OPOSTOS

Não vi seu rosto. Ele dormia debaixo do viaduto, enroscado em plásticos, jornais e panos que, um dia, foram cobertores. Eram dez da manhã, o sol brilhava, as pessoas passavam rente dele, correndo, fazendo exercícios, para espantar a morte ou para ficarem mais elegantes. Mas, ele dormia. Um sono solto, indiferente à vida, indiferente ao céu azul, indiferente às nuvens que quebravam a monotonia desse azul, com seus enormes flocos de algodão. Ele dormia, plácido, surdo, nem aí para o voluteio dos pássaros que comemoravam a beleza do dia.
Ah, a propósito, bem perto de sua cabeça jazia um pássaro morto, já em estado de decomposição. Mas, pouco se lhe dava: ele dormia o sono dos justos, o sono daqueles que foram condenados pelos deuses e pelos homens a viverem à margem da sociedade, sem passado, sem futuro, tendo como presente apenas o dia que estão vivendo, e vivendo quer dizer dormindo ou pedindo alguma coisa para comer.
Ninguém sabe o que lhe gerou essa culpa pela qual está pagando. Nem mesmo ele sabe. Ninguém sabe por qual razão está cumprindo essa sentença de fome, de frio, de sono ao relento, ao lado de um pássaro morto. Ninguém sabe por que foi condenado a ficar exposto à indiferença dos passantes, que lá vão correndo, ou caminhando em passos esportivos, com bonés, óculos, tênis e abrigos ou calções de marca.
Não vi seu rosto, repito. Mas sei que era negro, porque os pedaços de cobertor, de que ele se servia, não eram suficientes para lhe tapar o corpo todo. E as pernas eram de negro. Pernas finas, por sinal, ossos cobertos por uma pele escura.
Então me ocorreu a abissal diferença que existe entre os destinos de bilhões de criaturas. Por que alguns têm muito e muitos nada têm?
Exatamente naquele dia, nas grandes manchetes só aparecia a notícia da morte do Papa. Páginas e páginas foram lavradas para falar, não propriamente sobre o argentino Jorge Bergoglio, mas sobre o Papa, seu reinado, suas falas, suas tendências políticas. Aqui no Rio Grande do Sul, por exemplo, o jornal Zero Hora gastou nada menos do que 16 páginas sobre o pontífice.
Mas, há que se admitir: a imprensa, numa hora dessas, mais não faz do que emprestar eco às emoções e crendices da maioria do povo. Foi o povo que construiu a glória do Papado. Foi o povo que criou e alimentou essa fantasia de que o Papa não é uma simples pessoa, um ser de carne e osso, sujeito a todas as exigências da natureza animal, das mais humilhantes às mais excitantes. E, como todo e qualquer ser vivo, tem seu prazo de validade.
Infelizmente é assim. Mas só a certeza de que ninguém administra o planeta, nem traça destinos, só ela explica a existência de seres humanos que nem uma vida de cachorro levam, com direito à saúde, ao banho, ao perfume, à tosa, à internação, ao colo fofo da madame... Enquanto outros chegam à glória do Vaticano.
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